Lar de uma sonhadora


quarta-feira, 14 de março de 2012

A Incapacidade de Ser Verdadeiro


Paulo tinha fama de mentiroso. Um dia chegou em casa dizendo que vira no campo dois dragões-da-independência cuspindo fogo e lendo fotonovelas. A mãe botou-o de castigo, mas na semana seguinte ele veio contando que caíra no pátio da escola um pedaço de lua, todo cheio de buraquinhos, feito queijo, e ele provou e tinha gosto de queijo. Desta vez Paulo não só ficou sem sobremesa, como foi proibido de jogar futebol durante quinze dias. Quando o menino voltou falando que todas as borboletas da Terra passaram pela chácara de Siá Elpídia e queriam formar um tapete voador para transportá-lo ao sétimo céu, a mãe decidiu levá-lo ao médico. Após o exame, o Dr. Epaminondas abanou a cabeça: “Não há nada a fazer, Dona Coló. Este menino é mesmo um caso de poesia”.

Carlos Drummond de Andrade

sábado, 10 de dezembro de 2011

alfabeto

Toda vez que você viaja pra outro lugar com outro idioma
Se você não sabe o idioma do lugar onde estiver
Você é analfabeto lá

Basta saber falar o idioma daquele lugar
E será considerado alfabetizado
Pois fala o idioma de lá
Mesmo que não escreva e não leia aquele idioma
O fato de saber falar já o torna alfabetizado

Vou dar exemplo

Você fala português espanhol italiano
Você viaja pra Alemanha e não sabe falar nada de alemão
Na Alemanha você será analfabeto
Pois você não sabe escrever não sabe falar e não sabe ler em alemão

Você retorna ao Brasil
Agora está outra vez alfabetizado no idioma daqui

O governo brasileiro obriga toda criança e adulto a ir pra escola
Pra ser alfabetizado

Na verdade é o dinheiro que gasta que interessa ao governo
Porque a maioria dessa gente criança e adulta
Que vai obrigada pra escola
Já estava alfabetizada em casa mesmo

Isto mesmo
Toda criança e adulto que sabe falar fácil o idioma do país está alfabetizado
Aprender a escrever e ler o que escreve será outra etapa
Em casa ou na escola

Não tem porque o governo obrigar alguém a estudar na escola
Se poderia aprender sem sair de casa

Mesmo quando alguém não sabe escrever ou ler este idioma
Já foi alfabetizado se sabe falar o idioma

Os milhões de analfabetos que o governo cita em pesquisa
Não existem

Só será analfabeto
O recém nascido
E o surdo mudokinnal

No caso do recém nascido
Só será analfabeto até começar a falar

Aprendeu a falar
Está alfabetizado


kinnal

sábado, 19 de novembro de 2011

A lenda da serpente


Conta a lenda que uma vez uma serpente começou a perseguir um vaga-lume. Este, fugia rápido, com medo da feroz predadora, e a serpente nem pensava em desistir. Fugiu um dia e ela não desistia, dois dias e nada...

No terceiro dia, já sem forças, o vaga-lume parou e disse a serpente:
- Posso lhe fazer três perguntas?
- Não costumo abrir esse precedente a ninguém, mas já que vou te devorar mesmo, pode perguntar...
- Pertenço a sua cadeia alimentar?
- Não.
- Eu te fiz algum mal?
- Não
- Então, por que você quer acabar comigo?
- Porque não suporto ver você brilhar...

sábado, 8 de janeiro de 2011

Zen


Um samurai, conhecido por todos pela sua nobreza e honestidade,
veio visitar um monge Zen em busca de conselhos.
Entretanto, assim que entrou no templo onde o mestre rezava,
sentiu-se inferior,
e concluiu que, apesar de toda a sua vida lutando por justiça e paz, não tinha sequer chegado perto ao estado de graça do homem que tinha à sua frente.
- Por que estou me sentindo tão inferior?
- perguntou, assim que o monge acabou de rezar.
- Já enfrentei a morte muitas vezes,
defendi os mais fracos,
sei que não tenho nada do que me envergonhar.
Entretanto, ao vê-lo meditando, senti que minha vida não tinha a menor importância.
- Espere. Assim que eu tiver atendido todos que me procurarem
hoje, eu lhe darei a resposta.
Durante o dia inteiro o samurai ficou sentado no jardim do templo,
olhando as pessoas entrarem e saírem em busca de conselhos.
Viu como o monge atendia a todos com a mesma paciência e o mesmo sorriso luminoso em seu rosto.
Mas o seu estado de ânimo ficava cada vez pior,
pois tinha nascido para agir, não para esperar.
De noite, quando todos já haviam partido, ele insistiu:
- Agora o senhor pode me ensinar?
O mestre pediu que entrasse,
e conduziu-o até o seu quarto.
A lua cheia brilhava no céu,
e todo o ambiente inspirava uma profunda tranqüilidade.
- Está vendo esta lua, como é linda?
Ela vai cruzar todo o firmamento,
e amanhã o sol tornará de novo a brilhar.
Só que a luz do sol é muito mais forte,
e consegue mostrar os detalhes da paisagem que temos à nossa frente:
arvores,
montanhas,
nuvens.
Tenho contemplado os dois durante anos,
e nunca escutei a lua dizendo:
por que não tenho o mesmo brilho do sol?
Será que sou inferior a ele?
- Claro que não
- respondeu o samurai.
- Lua e sol são coisas diferentes,
e cada um tem sua própria beleza.
Não podemos comparar os dois.
- Então, você sabe a resposta.
Somos duas pessoas diferentes ...



quinta-feira, 21 de outubro de 2010

vida

*


Diz a sabedoria popular que um ser humano só tem uma vida completa quando planta uma árvore, escreve um livro e tem um filho.

O lance é que, principalmente hoje em dia, plantar uma árvore, escrever um livro e ter um filho não requer nenhuma habilidade especial. Para falar a verdade, dá muito mais trabalho derrubar uma árvore, ler um livro e evitar ter filhos. Essas é que deveriam ser consideradas as verdadeiras realizações de uma vida.

Plantar uma árvore é de longe a mais fácil das tarefas, até passarinho faz. Aliás, faz cagando. Mas quem mora em uma cidade grande sabe como é difícil derrubar uma árvore. Já é difícil até encontrar alguma árvore para ser derrubada. E quando você consegue uma árvore para derrubar, como no caso da mangueira que estava bem no local onde meus vizinhos queriam construir uma piscina, vi que é preciso esperar semanas por um processo altamente burocrático na prefeitura. E eles ainda tiveram que contratar uma equipe especializada. E depois cortar tudo em toquinhos pequenos, pro caminhão de entulho levar. Deu para sentir o trabalho? Bem mais complicado do que comer uma manga e enterrar o caroço.

E escrever um livro? Convenhamos: qualquer babaca pode fazer isso. Eu fiz, ora bolas! E para isso só precisei relatar o que me aconteceu em uma semana de viagem a portugal. Tem mamata mais fácil? Pior que tem! E eu conheço nego que nem precisou “escrever” um livro para “ser autor” de um livro. Dois anos fazendo um blog com “piadinhas de Photoshop”, uma compilação dos melhores momentos em cerca de 70 páginas e pronto! Um livro! Com ISBN e tudo!

Agora, ler um livro... isso não é mole. Eu não estou falando sobre simplesmente ler a sequência de palavras que formam frases, as frases que formam parágrafos e os parágrafos que formam capítulos e os capítulos que formam um livro. Isso qualquer um faz. Refiro-me a entender plenamente o sentido de tudo que foi ali escrito. Cara, dá um trabalho... Para vocês terem uma idéia, eu me meti a ler “O Capital”, de Marx, quando estava na oitava série. Não entendi lhufas (mas na época achei que entendi algo). Cinco anos de intensos estudos depois (tá, nem tão intensos assim), voltei a ler o mesmo livro na faculdade. Que diferença!. Eu me eduquei anos e estudei a porra do livro durante um semestre inteiro: passei com um medíocre 6. Já para escrever o meu livro, demorei menos de 3 meses. E, se me perguntassem, afirmaria que prefiro escrever outro a encarar mais um período de eliminar matérias.

Os filhos nem discuto. Olha para a fila da farmácia e veja quantas pessoas estão comprando camisinhas, pílulas, diafragmas e etc. Depois veja quantos estão comprando hormônios de fertilidade. Manter uma vida sexual ativa e garantir que você não está fabricando um herdeiro é, de longe, a tarefa mais difícil das três. São bilhões de espermatozóides tentando a vida e você tem que se certificar que absolutamente nenhum vai conseguir cumprir a sua missão. E não existe criatura mais tenaz do que um espermatozóide. Garanto que quando você goza no chuveiro, seus espermatozóides nadam o sistema de esgoto inteiro procurando qualquer coisa para fecundar. Eles sabem que estão no lugar errado, mas não perdem a esperança e continuam nadando, tentando a sorte.

Uma vida verdadeiramente realizada não é para qualquer um. Praticamente para ninguém. Mas me lembrei agora do “Contador”, um amigo de faculdade que tirou 10 (e em todas as matérias). Esse está no caminho certo para ter uma vida completa. Acho que o mais difícil mesmo vai ser a árvore, já que evitar filhos não é um grande problema para quem perde uma noite de sexta tentando entender o que Marx escreveu naquela merda de livro.

eu

domingo, 19 de setembro de 2010

ninguém faz falta


Se te queres matar
Se te queres matar, porque não te queres matar?
Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria...
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas
A que chamamos o mundo?
A cinematografia das horas representadas
Por actores de convenções e poses determinadas,
O circo polícromo do nosso dinamismo sem fim?
De que te serve o teu mundo interior que desconheces?
Talvez, matando-te, o conheças finalmente...
Talvez, acabando, comeces...
E de qualquer forma, se te cansa seres,
Ah, cansa-te nobremente,
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,
Não saúdes como eu a morte em literatura!

Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...
Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros existires que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar...

A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado
De que te chorem?
Descansa: pouco te chorarão...
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,
Quando não são de coisas nossas,
Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte,
Porque é a coisa depois da qual nada acontece aos outros...

Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda
Do mistério e da falta da tua vida falada...
Depois o horror do caixão visível e material,
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.
Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas,
Lamentando a pena de teres morrido,
E tu mera causa ocasional daquela carpidação,
Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas...
Muito mais morto aqui que calculas,
Mesmo que estejas muito mais vivo além...

Depois a trágica retirada para o jazigo ou a cova,
E depois o princípio da morte da tua memória.
Há primeiro em todos um alívio
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido...
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia...

Depois, lentamente esqueceste.
Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste;
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti.
Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.

Encara-te a frio, e encara a frio o que somos...
Se queres matar-te, mata-te...
Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência!...
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?

Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera
As seivas, e a circulação do sangue, e o amor?
Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?
Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem.
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?

És importante para ti, porque é a ti que te sentes.
És tudo para ti, porque para ti és o universo,
E o próprio universo e os outros
Satélites da tua subjectividade objectiva.
És importante para ti porque só tu és importante para ti.
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?

Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?
Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces,
Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?

Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?
Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente:
Torna-te parte carnal da terra e das coisas!
Dispersa-te, sistema físico-químico
De células nocturnamente conscientes
Pela nocturna consciência da inconsciência dos corpos,
Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências,
Pela relva e a erva da proliferação dos seres,
Pela névoa atómica das coisas,
Pelas paredes turbilhonantes
Do vácuo dinâmico do mundo...

*



Álvaro de Campos

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

A HISTÓRIA DA ÁGUIA




A águia é a ave que possui maior longevidade da espécie. Chega a viver setenta anos.

Mas para chegar a essa idade, aos quarenta anos ela tem que tomar uma séria e difícil decisão. Aos quarenta ela está com as unhas compridas e flexíveis, não consegue mais agarrar suas presas das quais se alimenta. O bico alongado e pontiagudo se curva. Apontando contra o peito estão as asas, envelhecidas e pesadas em função da grossura das penas, e voar já é tão difícil!

Então a águia só tem duas alternativas: Morrer, ou enfrentar um dolorido processo de renovação que irá durar cento e cinquenta dias.

Esse processo consiste em voar para o alto de uma montanha e se recolher em um ninho próximo a um paredão onde ela não necessite voar. Então, após encontrar esse lugar, a águia começa a bater com o bico em uma parede até conseguir arrancá-lo.

Após arrancá-lo, espera nascer um novo bico, com o qual vai depois arrancar suas unhas. Quando as novas unhas começam a nascer, ela passa a arrancar as velhas penas. E só cinco meses depois sai o formoso vôo de renovação e para viver então mais trinta anos.

Em nossa vida, muitas vezes, temos de nos resguardar por algum tempo e começar um processo de renovação. Para que continuemos a voar um vôo de vitória, devemos nos desprender de lembranças, costumes, velhos hábitos que nos causam dor.

Somente livres do peso do passado, poderemos aproveitar o resultado valioso que a renovação sempre nos traz.

*



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