quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Livro


*
A mão aberta e espalmada acariciava mais uma vez aquele dorso, aquele tronco, aquela pele anunciada em letras douradas.
Esperta e com capas abertas como um pára-quedas para amortecer a própria.
Mas a mão do leitor de nada quis saber e enfiou-a, arquivando-a como que para sempre na estante. -
Que petulância, que despautério!
– pensava a mulher -livro.
Depois que o tal leitor havia gozado, graças ao seu corpo e conteúdo, numa relação de alguns dias, já que o leitor era um tanto lento, e considerando que, seu conteúdo era um tanto farto, resultando assim em uma semana de romance interno e externo.
Estando assim satisfeito, lhe dava as costas, como algo vencido e superado em sua medíocre vida de leitor faminto.
Mais um, mais uma, e partia para a outra prateleira a usufruir de mais um corpo, para se deleitar de outra ostra literária.
- Não se abram, não se deixem levar, não se entreguem!
– exclama a mulher livro ao ver-se sendo descaradamente, trocada por outra, ou por outro.
– Quanta promiscuidade!
Mesmo em meio à multidão da estante, sentia-se só e pensava lá com suas páginas.
Um dia ele quis me levar para sua casa, sem poder impedir, fui.
Sei que, o que o atraiu foi minha capa, é a primeira coisa que atrai alguém, em segundo lugar foi o título
- Incrível como os ditos seres humanos ainda se prendem tanto, e agem tanto, movidos por títulos!
Chegando em seu lar, ele me desnudava, me acariciava página a página com suas mãos de pianista, tocando-me como um instrumento raro.
Conheceu-me totalmente por dentro, primeiro desfrutando de minha contra-capa, degustando minha introdução, deliciando-se com minhas linhas e entrelinhas, devorando-me em capítulos, fartando-se com brilho nos olhos a cada revelação, depois chegou comigo ao prazer final, salivando com tal ambrosia literária, com olhar malicioso e saciado.
Não me abriria mais com suas mãos, não colocaria mais seu marcador de couro dentro de mim, dividindo-me em partes.
Então segurou-me fechada, assim descansei um bocado de tempo, quase adormecendo em repouso sobre seu sexo intumescido.
Doce ilusão momentânea, não me abriu mais, não me tocou, apenas arquivou-me como tantas outras, como tantos outros.
Sendo assim, seria tudo ou nada, atirei-me quando ele passava, com reflexo ligeiro, este me amparou com palma macia, não resistiu, abriu-me, vociferou uma de minhas partes mais prazerosas, não resistindo, manteve-me aberta, a devorar-me novamente.
Assim, levou-me novamente para sua cama, sorrindo.
Era só isso que eu queria, mais uma vez.
Havia valido a pena esperar, já havia se passado cinqüenta anos, até atirar-me a sua frente após decidir o arriscado suicídio com final feliz.
– A volta da mulher- livro.
Não sabia quanto duraria, mas quem sabe? Poderia tornar-se seu livro de cabeceira definitivo, e deitado sobre o criado-mudo e sob o despertador calado, eterno triângulo amoroso adormecido ao lado do amado leitor envelhecido.
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